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Dezembro 7, 2018
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João Gomes Pedro: Eu reaprendi a brincar com a criança.

/ RAWSTØRIES

RAWSTØRIES são reflexões retiradas de sentimentos que me surgem durante sessões fotográficas. E são conversas de alma entre pessoas que gostam de pessoas e de ser pessoas. Sobre pessoas que vale a pena conhecer enquanto pessoas. Conversas espontâneas, íntimas sem ser indiscretas, sem guião e sem preocupações, mas todas elas conduzidas com o propósito de dar a conhecer o que interessa a quem as tem; e sempre com a curiosidade e a despreocupação que só a uma criança se poderia pedir.

Porque nas conversas como na vida, acredito que cada pessoa é única. E que por detrás de um nome, há sempre um ser humano e uma história que vale a pena conhecer.

Esta, podia ser uma conversa científica, perante a oportunidade de conversar com um dos mais capazes e incontornáveis pediatras portugueses com reconhecimento e distinção internacional. Mas, apesar desse facto e acima de tudo, o Professor João Gomes Pedro torna-o impossível, pois revela, também nas conversas, a forma que o distingue nas consultas e com que entrega a sua competência, diariamente, às crianças e pais do nosso país: com emoção, com serenidade, com bom senso, com curiosidade e sempre de olhos nos olhos.

 

Ricardo Pereira da Silva [RAWPHØTOLOGY]: Se numa viagem de elevador tivesse que contar a alguém o que fez da sua vida, o que diria?

João Gomes Pedro: Tentaria criar uma analogia entre o que se poderia ver de cima desse prédio, que estaríamos a subir; e o que se vê do cimo de uma vida feita de experiência, onde passa a ser especial aquilo que vimos ao longo dela, em termos de personalidade, de unicidade. Como quem sobe um monte e repara nos detalhes do percurso, que não repara no dia-a-dia; e no prazer da descoberta que sentimos quando chegamos ao cimo.

RPS: Na sua óptica, educar tem mais a ver com falar ou com ouvir?

JGP: Dizer é muito importante, porque é algo que transborda de nós próprios. Quanto a ouvir, como escreveu Berry Brazelton, no seu último livro, ‘é preciso aprender a ouvir’. E, para mim, cada vez mais tudo tem que ser inserido na identidade e na circunstância.

Na identidade que é o eu de cada um, o eu completo, cheio de propostas, cheio de desejos, cheio de promessas, cheio de garantias; ou, por vezes, vazio de garantias, mas cheio de expectativas. A identidade tem a ver com a pessoas, tem a ver com a realidade da vida em si. Cada pessoa é única e tem que se ouvir essa pessoa e falar com ela, como sendo a única no mundo, para chegarmos ao íntimo, que torna essa pessoa significativa para as pessoas. Acreditamos cada vez mais no modelo relacional, baseado na relação, na identidade. E a terceira coisa e não menos importante, é a circunstância: educar uma criança não acaba nem começa somente na criança, mas prolonga-se ao longo da existência em função de toda a circunstância que a envolve a cada dia. A mãe e o pai, os irmãos, os avós, o cão, o gato,… O que quer que seja, que dá sentido a cada identidade. E é essa que temos que guardar em silêncio, em relação, em algo que é o produto duma interacção dinâmica e constante, entre o educador, a criança e a família… o envolvimento.

RPS: Acha que o toque é determinante na função de educar?

JGP: Importantíssimo! Todos os sentidos são fundamentais, com maior projecção, maior significado nalguns, em função do tempo ou do espaço para um bebé recém-nascido, mas o toque é fundamental. O toque vai criar qualquer coisa que alinha directamente na distância que vai de qualquer bocado de pele – embora alguns sejam mais significativos, como a cabeça, a nuca, as costas, aquela massagem que instintivamente a mãe dá ao seu bebé par criar um vínculo, um reconhecimento, uma identidade – aqui e outra vez, numa circunstância. Portanto, o toque é o primeiro sentido a emergir, a seguir ao nascimento. E eu sinto-me muito feliz por ter sido um dos elementos do grupo que provou a importância de meia-hora de toque, de contacto mãe-bebé, a seguir ao nascimento. A influencia que esse toque teve e potencialmente tem, ao garantir que o cérebro límbico está a reconhecer qualquer coisa que é importante para aquela mãe e para aquele bebé. Isto pode ser transmitido em várias idades da criança e mesmo do adulto.

RPS: Refere-se à sua tese sobre as Fibras-C?

JPG: Nós temos que ser sensíveis à Ciência. Não chega a paixão, nem a ternura. Temos que garantir o que é o avanço, no reconhecimento, por exemplo, das fibras tácteis. E daquelas que, não mielinizadas, demoram mais tempo que a sensação da dor, mas têm um significado mais potencial em função do que acontece no cérebro límbico, nas amígdalas, no hipocampo, no córtex pré-frontal; e que dá sentido àquilo que é a nossa relação no dia-a-dia, no nosso encontro com quem quer que seja, e sobretudo com uma criança…

RPS: As fibras tácteis também têm, portanto, o seu papel na relação entre adultos ou entre uma pessoa e um animal?

JGP: É a mesma coisa. É curioso, porque se nos fossemos procurar as pessoas que cumprimentam, por exemplo, com um aperto de mão e a outra mão ligada ao antebraço ou ao braço da outra pessoa, como acontecia com o Bill Clinton,… eventualmente, se nós fossemos descriminar as várias fibras, havíamos de encontrar nas pessoas algumas mais ligadas ao antebraço, enquanto noutras pessoas, nalgumas culturas,… Por exemplo, os americanos, depois de nos verem a bater nas costas dos amigos, quiseram imitar-nos e então batem mais do que nós batemos, nas costas, que é outro ponto sensível de aquisição da relação. Sem esquecer a importância do que é o toque, radicado nas fibras que partem da mão. A mãe, quando descobre o bebé recém-nascido começa a tocar com as pontas dos dedos, na nuca, nas costas, nos braços, e sobretudo na mão; e vai mudando, evoluindo esse toque, em função do tempo, em função do espaço, mas voltando sempre às mesmas origens de fibras que transmitem algo que é fundamental para o vínculo e construção do amor.

RPS: O que lhe deram as crianças de mais valioso, na vida?

JGP: A vontade de descobrir. O mistério. Em cada uma delas. E o mistério da relação, cada uma com as várias dimensões da sua circunstância.

RPS: Acha que uma criança, enquanto criança, está mais perto de ser perfeita do que um adulto?

JGP: Sim, se perfeição tiver alguma coisa a ver com êxtase, com o gozo duma descoberta, com qualquer coisa que se apanha para lá da fala, para lá do toque, para lá da palavra; para representar um todo, que nos marca, que é isso que nos acontece com os nossos mais significativos, os nossos parentes.

RPS: Concorda que, entre adultos, houve um tempo em que nos era mais fácil amar com a mesma intensidade e a mesmo espírito de missão com que amamos um filho?

JGP: Eu acho que as medidas são diferentes. O nosso amor pelas pessoas que encontramos, na profissão, ligadas à família, ligadas a esse alguém que para nós é o inicio de uma paixão, esses conteúdos e esse continentes, aquilo que existe dentro de cada estrutura, vai-se enchendo de significados ao longo da vida. Um filho alberga dimensões que extravasam, nesse vaso onde se vão juntando as experiências e os sentidos e as emoções e os sentimentos. Aquilo que guardamos como relíquia; as relações ao longo do tempo e do espaço da vida, para os nossos filhos, tem uma dimensão metafísica e que nos ajuda a construir o todo, mas de um outro modo porventura mais sensível e mais exigente.

Estamos a viver um mundo em que a relação é ultrapassada por outras dimensões da comunicação. Nomeadamente, hoje a parafernália da tecnologia faz, por exemplo, com que muitos casais cheguem a mim com uma criança que já tem meses ou anos de vida… Eu pergunto porque é que eu só a passei a vê-la a partir dessa altura?

Muitos pais dizem-me ‘Eu procurei-o porque você não está de lado, a escrever num computador. Está a olhar para cada um de nós. Com a profundidade que nós ambicionamos’. As pessoas hoje precisam cada vez mais do toque, do olhar, de ouvir, de se verem envolvidas numa série de dimensões que estão a ser apagadas por tecnologias que não garantem uma humanização da relação entre as pessoas.

RPS: Nas várias fotografias que já fiz, tenho sempre a necessidade de ter conversas com as pessoas…

JGP: A Fotografia, em si, é um meio de comunicação…

RPS: E tenho reparado, na grande parte das vezes, quando tento conhecer as pessoas mais a fundo, se eu for mais e mais a fundo, acabo por descobrir que a causa de muitos medos que os adultos têm assenta numa relação deficitária com a figura do pai – muito mais do que com a mãe -, quando eram crianças. Tendo a maior parte destas pessoas mais de 40 anos, isto leva-me a pensar que podemos estar a falar de uma consequência da educação típica até aos anos 80, em que havia uma maior distância ou quase ausência afectiva, da figura paterna para com os filhos, muito mais do que em relação à mãe…

JGP: Sim. O modelo social e relacional era diferente. O pai era quem, reconhecidamente pela família, assegurava a independência económica da família, enquanto que a mãe era o elemento que garantia o vínculo, os espaços tão significativos do acordar, do adormecer, do comer, do brincar, etc. Hoje em dia, felizmente, isso está alterado. O pai e a mãe trocam de posições e comungam de varias funções e é importante que a criança sinta e aprenda na evidência de diferenças muito significativas, no modo em que se processam todos as interacções sensoriais. Desde a vida pré-natal até ao fim do ciclo da vida, passando por uma adolescência que achamos cada vez mais importante. E mais prolongada. Estou em crer que, dentro de poucos anos, a Organização Mundial de Saúde vai propor que o período da adolescência vá até aos 24 ou 25 anos, mercê do significado que tem este cruzamento de sensibilidades, de cognição, de aprendizagem da relação.

RPS: Há quem diga que durante o primeiro ano de idade o bebé é quase só da mãe, numa perspectiva simbiótica. Qual é a relevância do pai na vida duma criança nessas várias fases?

JGP: É igual. Várias coisas tiveram influência num distanciamento do pai, que hoje não se admite, nem se pode deixar de dar uma importância brutal.

Durante vários anos fizemos uma investigação que garantiu a publicação de textos importantes em revistas reconhecidas no mundo científico, nos Estados Unidos. Nós fizemos sobretudo investigação com as mães. Seguíamos os bebés e as mães e com mais dificuldade os pais, porque não podiam perder uma tarde de trabalho. Hoje em dia isso está tudo mudado e nós procuramos é que o pai se vincule e se encontre nesta oportunidade de participação num aspecto tão importante da vida dos filhos, desde o antes de nascer, a que hoje atribuímos uma importância enorme e extensível a tantas dimensões da vida.

Uma criança antes de nascer sabe reconhecer e diferenciar as vozes ou a mão da mãe e do pai na barriga da mãe. Por essas razões, a consulta pré-natal é um must, e deve envolver a presença de ambos.

RPS: Com base nos vários estudos que já fez e do que conhece de modelos educativos, noutros países, gostava que os pais portugueses fossem diferentes nalguma coisa, comparativamente com outros povos?

JGP: Ser melhor ou pior não tem muita razão de ser neste enquadramento porque os pais são aquilo que sensivelmente está na identidade dos seus genes, que está na influencia cultural que recebem do meio em que nasceram, do meio em que vivem e trabalham, etc.

Não queria estar a pôr isso como se fosse futebol e dizer qual é a melhor equipa. A melhor equipa é aquela que faz sentir a cada mãe e cada pai, que vale a pena garantir e viver para garantir, como educador, como pessoal de saúde, como pessoal da justiça, como pessoal do ambiente, garantir mais saúde, mais emoções, mais sentimentos, mais verdade e mais força para fazer prolongar nos vários touch points da vida; a ternura, a paixão, a garantia de que é num modelo relacional que cada um encontra à sua maneira, em função da sua cultura, en função das suas descobertas e daquilo que vai construindo no seio familiar.

RPS: Acha que realidades tão recorrentes, como é, designadamente, a dislexia – sendo ainda vista como uma desvantagem do ponto de vista socializante – podem ser uma vantagem se a virmos como um indutor ou potenciador cognitivo ou mesmo artístico? Ou seja, podemos estar a falar duma criança que vê o mundo de outra forma e sob outras prioridades?

JGP: Diria que as vantagens e porventura as desvantagens, têm que ser entendidas na personalidade de cada um. Não há receitas universais para a dislexia, para o asperger ou para a hiper-actividade; há é circunstancias clínicas que têm que ser reconhecidas, sem preconceitos ou pressupostos medicamentosos ou terapêuticos. Cada situação como a dislexia tem que ser avaliada cada vez mais com muito senso, em função da história da vida da criança, e em função da história da vida da família e depois, a partir daí, fazermos uma proposta de intervenção adequada a qualquer coisa que tem que ser tratada, assumida de uma maneira pessoal e única. E a grande tentação continua a ser garantir receitas universais.

RPS: Quando é que percebeu que já era adulto e já não havia volta a dar?

JGP: É difícil… Eu acho que me senti como mais responsável perante a vida, através da influência de vários grupos a que estive ligado, nomeadamente universitários, na juventude universitária católica, de grupos de cinema onde aprendi com pessoas, como o João Bénard da Costa; e muitos outros, como os de intervenção política, em que aprendi uma certa linha de sensibilidade face ao que está para além de nós; uma linha de criar mensagens através do cinema, de modo a fazer chegar a nossa própria mensagem ao maior número de pessoas, o próprio facto de percebermos alguma coisa da injustiça e do que se estava a passar à nossa volta em termos da vivência duma ditadura… Eu acho que foram estas influências várias que me trouxeram um sentimento de obrigação, de cumprimento de destinos que não só do nosso próprio; e acho que foi a partir dessas bases em que passei a querer ser um interventor mais directo na sociedade, que senti que isso talvez fosse o inicio duma mensagem de adulto.

RPS: Trabalhar com crianças, tornou-o mais criança ou mais adulto?

JGP: Cada vez mais criança.

RPS: Em que medida?

JGP: Sinto que em cada dia, na minha actividade profissional, descubro coisas de encantar em cada criança. E apetece-me brincar e ainda não abandonei a minha vida clínica porque cada vez mais aquilo que me dá mais gozo na vida é descobrir na inocência, na felicidade, na procura, na garantia do significado das coisas através do brincar. Eu reaprendi a brincar com a criança. E aprendi a brincar, ensinando os meus alunos da Faculdade de Medicina, de Psicologia, da Faculdade de Letras, onde também fui professor catedrático. Senti em cada uma destas intervenções assumidas que é preciso, em cada dia, reaprender a brincar; porque aprender a brincar leva-nos próximo da criança e a criança ensina-nos o Mundo. Ensina-nos o caminho. E dá-nos a força de garantirmos essa nossa responsabilidade.

RPS: Se pudesse dar um só conselho a uma criança, qual seria?

JGP: Para brincar comigo.


Fotografia: Ricardo Pereira da Silva [RAWPHØTOLOGY]

Entrevista e Sessão Fotográfica produzidas no âmbito do projecto editorial 60NTA 60MIGO, que assinala o 60º Aniversário do Colégio O Nosso Jardim, em Lisboa.

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