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É para estarmos os dois e bem.

 

Costumo dizer que uma marca não se cria: faz-se todos os dias. E todos esses dias requerem o melhor de nós, mesmo quando não somos os melhores todos os dias. Também digo que uma marca só é digna desse título quando é relevante para alguém. Caso contrário, é um símbolo tão válido como uma casa abandonada.

O Amor, é como uma marca que deixa marca, no mínimo na vida de 2 pessoas. No mínimo. Neste caso, por ter deixado marca em mim, a cumplicidade evidente que há entre o Ângelo e a Rosa (Romi para ele e para o padre que os casou), quis saber de que argamassa era feita esta casa, que foi construída há 20 anos. E confirmei o que já suspeitava: um amor assim, faz-se todos os dias. E se nos distrairmos ao ouvi-los, corremos o risco de chegar a acreditar que é tudo natural e obra do acaso.

 

Ricardo Pereira da Silva (RPS): Como e quando se conheceram?

Rosa Patela (RP): Tínhamos uma amiga em comum, a Eduarda, que nos apresentou, quando estávamos a estudar para Cálculo 3. Era, mais ou menos, Agosto de 1999.

RPS: Cálculo 3, de que curso?

RP: É uma cadeira do 2º Ano da Faculdade. Ele, em Engenharia Mecânica; e eu em Engenharia dos Materiais, na época. Porque eu acabei por tirar Engenharia Química. Aquilo foi só mesmo para ir lá conhecê-lo!

Estávamos todos a estudar Cálculo 3, porque havia muito o hábito de ir para a biblioteca da Universidade de Aveiro. E foi nessa altura que nos conhecemos, através da Eduarda. E depois, passados uns dias, cheguei a casa um sábado à tarde, vinda do cemitério, e vem o meu irmão ter comigo, de toalha amarrada à cintura e diz-me ‘Ligou para aí um gajo para falar contigo. O Ângelo’. Fui logo ligar para a Eduarda! Nesse dia não saímos porque não consegui falar contigo… Mas foi uma coisa de dias: nós conhecemo-nos e, passados uns dias, começamos a namorar.

RPS: O que aconteceu depois?

RP: Não me lembro exactamente, mas lembro-me que foi tudo muito simples. O Ângelo não se lembra de nada! Mas acho que foi daquela vez que tínhamos estado uma tarde inteira na Barra, a conversar, em vez de estarmos a estudar… Lembras-te de termos ido para a Barra para um café ao pé do Farol?

Ângelo Rocha (AR): Acho que sim… Estava sol!

RPS: Nada mau. Já te lembras de alguma coisa. Tens a certeza que era ela?

AR: Era, era!

RP: E depois, ele fazia anos. E, não sei como é que chegamos àquele ponto, mas demos um beijo no elevador do Departamento de Mecânica. Eu não tinha mais nada para lhe dar… E tudo começou aí, a 1 de Setembro de 1999, nos anos dele.

RPS: E como é que tiveram a noção que se tratava ‘daquela Pessoa’?

AR: Isso, acho que mais tarde.

RPS: Às oito da noite?

RP: Lembro-me perfeitamente de estar com a Salomé, passados uns dias, e ela dizer que não tínhamos nada a ver um com o outro.

RPS: Porquê?

AR: Não sei, talvez porque eu venho de um meio mais rural, mais de campo, uma educação mais religiosa… Ela não: é uma miúda da cidade. E, de repente, juntam-se os dois e acho que foi aquela paixão momentânea, tresloucada…

RP: Lembro-me que cheguei ao sítio onde ele estava, com a Eduarda, e ele estava a estudar. E eu disse ‘Olá’ e ele estava virado para baixo e olhou para mim, de baixo para cima, e eu pensar ‘Calma, Chefe, eu só vim aqui ter com a Eduarda’. Foi uma coisa mesmo muito natural. Como se aquilo estivesse marcado, sabes?

RPS: Ângelo, e quando foi, mais tarde, tal como dizes, o momento em que tiveste a noção que era ela?

AR: Depois, quando comecei a conhecer a história da Romi; comecei a conhecê-la profundamente. Mas acho que aí, talvez dois ou três meses depois, foi quando percebi que era ela.

RPS: Que idade tinhas?

AR: Teria 21 ou 22 anos. Foi num espaço de 2 ou 3 meses que disse a mim mesmo ‘É capaz de valer o investimento’…

RPS: E houve algo em concreto ou foi um conjunto de coisas?

AR: Acho que foi o pacote completo. Várias coisas. A amizade, a cumplicidade e depois toda a história de vida dela. Ou seja, era uma rapariga que ‘os tinha no sítio’, que tinha passado por muito e que soube dar a volta e aguentar todas as situações da vida dela. Isso, de alguma forma, dá segurança a qualquer pessoa. A mim, deu-me, não só pela cumplicidade, pelo amor, pelo carinho; mas também por estarmos a falar duma pessoa já com experiência, com bagagem. E foi isso que também me levou a investir.

RPS: E tu, lembras-te qual foi o momento?

RP: Foi uma coisa logo desde o inicio, porque… Foram anos muito maus, de facto. E acho que o pior ainda estava para vir. E o Ângelo foi sempre um companheiro, que nunca virou as costas. E podia ter virado muito facilmente, porque é difícil lidar comigo e principalmente neste tipo de circunstâncias. E ele era o ombro que eu não tinha.

RPS: Viste nele a mesma força que ele viu em ti; ou foi mais o lado do cuidado dele contigo?

RP: Vi nele a paz que eu não tinha. E o cuidado que eu não tinha, também.

RPS: Ele via-te…

RP: É verdade.

RPS: Houve algum momento em que tiveste uma certeza do tipo ‘É este, o meu homem’ ou foi algo que foi crescendo?

RP: Não, foi uma coisa muito natural e não me lembro de nenhum episódio que se destaque. Acho que os anos foram passando e nós estamos aqui.

AR: Sim, depois tu mudaste de universidade, muito depois… Para nos encontrarmos, eu pedia o carro ao meu pai, e tinha que fazer 63,2 kms, num Honda Civic de 1985, a gás…

RP: Com um escape de rendimento!

AR: Era a panela que estava rota!

RP: Ele chegava e toda a gente dizia ‘Está aí o Ângelo!’

AR: E então, ía ter com ela e tentava ao máximo tirá-la do ambiente em que ela estava. Ao domingo à noite íamos comer ao McDonalds

RP: Sim, porque houve ali uma fase em que o meu pai, pouco tempo depois da minha mãe morrer, arranjou uma namorada, uns 8 anos mais nova que ele; e nós tínhamos 2 casas no mesmo sítio, separadas por uma entrada de garagem. E então, a certa altura, ele recuperou uma das casas, que tinha comprado antes da minha mãe falecer, e foi para lá viver com a namorada, que tinha um filho com 8 anos. E, na cabeça dele, achando que era o melhor que estava a fazer, a regra que ele instituiu, era: em nossa casa vivíamos, o meu pai, eu, o meu irmão, a minha avó e uma prima minha, que vivia lá desde bebé, naquela que sempre foi a casa dos meus pais. E na casa ao lado, vivia ele com ela. E, para ela não ter que ser metida na vida duma pessoa que já morreu e para também não ter que levar com tudo o que vinha de trás, ele instituiu que ela fazia o almoço para eles os 3, todos os dias; mas o jantar era em nossa casa e quem fazia era eu, para estarmos todos juntos – incluindo ela e o filho. E isto foi extremamente traumático, porque, claro, ele é um homem e queria fazer-lhe as vontades todas; tinha 47 anos na altura que a minha mãe faleceu; e isto passa-se antes do 50 e acho que ele teve muito medo de ficar sozinho; e por isso, houvesse o que houvesse, às 8 horas eu tinha que ter o jantar à mesa. E tinha que ser algo que toda a gente gostasse. E ela chegava a fazer-me coisas, do género: chegava à mesa, sentava-se, levantava a tampa da panela e se não gostava, levantava-se e ía-se embora e o meu pai ía atrás dela.

RPS: Que idade tinhas?

RP: 21 ou 22. Por aí. E o Ângelo apareceu numa altura em que isto se passava com muita regularidade. E depois, eu precisava de estudar. Mas para o meu pai, a prioridade era ele, e a casa e as coisas da casa. Portanto, eu tinha que assumir a função da minha mãe. Se estivesse a estudar, tinha que parar para fazer o jantar; se estivesse na faculdade, tinha que vir para fazer o jantar; eu não podia marcar nada, de forma a que interferisse com a hora do jantar. E, um dia, estávamos no carro, à noite, e apercebemo-nos que a família toda estava a regressar de jantar no restaurante. E eu senti-me a pior pessoa do mundo. Porque aí eu percebi que era mesmo a criada da casa.

E depois, a partir daí, a gente começou a ficar para jantar, ao domingo. Eu nunca vinha jantar a casa e quando a gente não tinha dinheiro, comia nem que fosse uma tosta mista.

RPS: Alguma vez vos passou pela cabeça ficarem juntos por terem medo, tal como ele, de ficarem sozinhos?

RP: Não.

AR: Não.

RPS: De alguma forma, no teu caso, a vida com o Ângelo foi uma tábua de salvação do que estavas a viver e a penalizar…

RP: Foi, pelo menos, alguém com quem podia partilhar.

AR: Porque, na altura, eu também não podia fazer muito, não é?

RPS: Acham que a decisão de viverem juntos teve a ver com o facto de acharem que tinham conhecido o amor da vossa vida e não havia razão para esperar; ou que houve uma predisposição maior para dar esse passo, para poderes sair dessa situação?

RP: Não, acho que foi uma decisão muito natural e que nos encontramos no momento certo.

AR: E coincidiu. As coisas foram rolando naturalmente. Depois, eu acabei a universidade e estive um ano a trabalhar lá, em Aveiro. E depois, passado um ano, vim logo para o sul. E tu começaste a vir aos fins-de-semana e nas férias. E também era um momento de escape, para ela. Ela não conseguia estudar, em Aveiro. Depois, naturalmente, as coisas aconteceram. O teu irmão também veio para o sul. Ou seja, de repente, aquela confusão familiar também acabou por acalmar.

RP: E, nessa altura, a minha avó também decidiu que queria ir passar o Natal ao Brasil, com a família. E aconteceu-lhe algo durante a viagem e quando chegou lá não conhecia ninguém. Era preciso ir lá buscá-la. E eu, que tinha juntado dinheiro de abonos e outras coisas numa conta, fui buscar esse dinheiro, para ir buscar a minha avó ao Brasil. Mas, entretanto, o meu tio prontificou-se a vir trazê-la para Portugal e eu fiquei. E ele disse-me que aquele dinheiro era para eu ir ao Brasil quando pudesse. E eu fui e estive lá um mês. E quando cheguei, foi quando conheci o Ângelo. Depois, o meu pai teve um acidente e eu fui trabalhar para a Undercolors e estudava de dia. E no primeiro dia em que fui trabalhar, cheguei a casa, à noite, e o meu pai em vez de estar em casa dele, estava sentado no sofá em nossa casa e disse que tinha vindo para saber se tinha corrido tudo bem. E depois, disse que ia à padaria – que é um hábito que há muito em Espinho, o de ir comprar pão à noite para o dia seguinte. E quando eu subi, estava a roupa dele toda em cima da cama dele. Nesse dia, tinha deixado a namorada. Ou seja, quando eu, finalmente, também decidi começar a libertar-me daquilo, ele voltou para casa. E ela esteve 2 anos a viver na casa deles. Foi surreal.

RPS: Ângelo, o facto da Rosa ter uma herança tão sofrida, ter-te-á dado a ti um contexto maior na vida dela? Ou seja, sentiste-te mais adulto e uma pessoa maior por teres uma oportunidade de viveres os problemas da mulher que amas e de a teres ajudado?

AR: Na realidade, na altura eu podia ouvi-la, mas não podia fazer muito.

RP: Ele suportou muita coisa. Suportou o facto de eles serem a prioridade na minha vida durante muitos anos e até há bem pouco tempo. E nunca desistiu.

RPS: E nunca te deixou desistir…

RP: Também. Porque ele também nunca me pressionou para eu sair. Ele foi sempre muito companheiro, no sentido de ajudar para que as coisas me corressem bem. Ele nunca os censurou, apesar de ter todas as razões para isso. Nunca os recriminou.

RPS: O que era importante para ti, Ângelo, era que o que era bom era o que fosse bom para a Rosa…

AR: Sim. Sem dúvida.

RPS: Essa é a base do amor… Se ele te pedisse a mesma coisa, não agora, que se amam, mas no início, farias o mesmo por ele, Rosa?

RP: Acho que tinha ficado. Há qualquer coisa, que eu ainda hoje não sei bem o que é, mas a sensação que tive quando o conheci, foi ‘Pronto, isto aqui está feito’.

AR: Sim, mas também, do meu lado, os meus pais não aceitaram a Romi. Também foi difícil para ela…

RPS: Porquê?

RP: Porque eu era muito diferente deles

AR: Lá está, como eu disse, eu venho dum meio rural, ainda que a 10 kms da cidade de Aveiro, mas aquilo é campo. O ideal de vida da minha mãe é estar em casa, com tudo fechado. Tudo fechado e não falar com ninguém. Ou seja, de alguma forma essa limitação condicionou também o tipo de tratamento que tinha com a Romi. Tivemos situações um bocado complicadas.

RPS: Quando recomeçou a tua reconversão para um mundo mais urbano?

AR: Foi depois de conhecer a Romi e especialmente quando vim cá para baixo. Eu estive cá em baixo cerca de 8 anos, sozinho, depois de acabar o curso. Mas ia quase todas as semanas para cima.

RPS: Mas a universidade retirou alguma dessa ruralidade que trazias contigo. Deu-te mais mundo…

AR: Sim, deu-me mais, mas quando eu entrei na universidade, entrei com um objectivo: um dia, trabalhar na empresa no meu pai, que ele tem com um sócio, de reparação de camiões e máquinas. E eu estava muito focado nisso. Mas depois, uma vez na universidade, o objectivo mudou completamente. E depois conheci a Romi.

A minha irmã tem um curso e está lá na empresa, à frente dum balcão e a contar peças. Os filhos, para o meu pai, são como empregados. Ou pior que isso.

RPS: Ou seja, o que vos une também foi, entre aspas, uma boia de salvação para a carga familiar que tinham…

AR: Em parte, foi. Acabou por ser. Primeiro, fomos obrigados a sair do nosso meio. Vi que ali não havia futuro, não havia apoio. Tive mais apoio na empresa onde estive do que na do meu pai.

RPS: Isso foi o que vos juntou. E a argamassa? Uma coisa é estarem juntos, mas falta explicar o que vos mantém unidos tanto tempo… Como lubrificam as rodas dentadas que faz funcionar a vossa relação? Senão, range…

RP: Ah, mas range! Muitas vezes!

AR: Range, range!

RP: Eu não acredito em casais que não discutem, sabes?

AR: Nem eu. Ainda há dias a minha mãe ligou e comentou que o irmão dela está em processo de divórcio. E depois disse: ‘Gosto tanto de vos ver juntos aos dois. É tão bom’. E eu disse, ‘Oh, mãe, às vezes também andamos aqui ao murro’.

RP: A irmã dele, uma vez, disse-me uma coisa, que eu percebi ali o que se sentia naquela casa em relação a nós: ‘Vocês fizeram um ano de casados, não foi? Quem diria!’. E eu pensei: ‘Mas quem diria, porquê? O que há de mal em nós para dizerem isto?’.

AR: Sim, há muito essa linha de pensamento.

RP: Até que eles um dia mudaram o chip. Eles nunca acreditaram que isto era a sério.

RPS: Como é que vocês garantem essa argamassa que vos mantém unidos, ao fim de 10 anos de casados e 20 juntos?

RP: Um dia de cada vez, acho eu. Há uma coisa que nós tentamos sempre: que a rotina não tome conta de nós. Porque eu sou uma pessoa que quando a coisa começa a ficar muito rotineira, começo a passar-me. ‘Ah, ok, isto está tudo muito bem, mas agora vamos mas é mudar de casa! Ou vamos viajar!’. Acho que somos um bocado assim. Apesar dum sofá saber muito bem, não é muito o que nós fazemos. E eu sou do tipo ‘Se não gostar, digo’. E às vezes sai tão mal… Ele, nem tanto. E eu tenho pena que ele não se queixe mais vezes.

AR: Pois sai…

RPS: Como assim? A forma como o dizes?

RP: Sim… Mas ele depois percebe. E é do estilo de me dizer ‘Vá, come qualquer coisa’…

AR: Ou ‘Vai dormir’.

RP: Mas há algo que sempre mantivemos durante todos estes anos: nunca ir para a cama zangados. E quando vamos, depois eu começo a queixar-me e resolvemos o assunto. Ou seja, dormirmos zangados, faz-me muita confusão. Posso ir dormir zangada com o mundo, mas não com ele. Por isso, não há uma receita. É natural.

RPS: Dizem vocês…

AR: Sim, dizemos nós. Se calhar, alguém de fora pode ver isto de outra maneira.

RP: Exactamente. Nós, criticados, já fomos muitas vezes. Acho que as pessoas têm muito a ideia que o Ângelo só faz aquilo que eu quero. E não é verdade…

AR: Não, não é.

RP: Mas a verdade não é essa. Não há vez que a gente vá a qualquer sitio, que a coisa não seja falada em casa.

AR: E já tive muitas situações, para o bom, mas também para o mau. Por exemplo, esquecer-me de marcar férias.

RP: Isso acontece duas vezes por ano, há 20 anos…

AR: Não é duas vezes por ano. É uma ou duas, só.

RP: Claro, porque só começamos a ir de férias duas vezes por ano, só há uns anos… Estás a ver, é isto!

RPS: Já vi tudo! Mas resolvem isso…

RP: Lá está, dois berros e resolve-se!

RPS: Mudaram alguma qualidade individual, em proveito da vossa relação? 

AR: Eu, sim. Sinto que mudei alguma coisa. Primeiro, eu sinto que era uma pessoa, de alguma forma, despreocupada. Despreocupado com a minha aparência; com tudo. Não ligava nada. E tinha hábitos maus: fumava, tinha uma relação com o álcool um bocado complicada. E a Romi ajudou-me a melhorar alguns aspectos. Porque sinto que, se progredisse mais nesses maus hábitos, acabaria por criar muitos problemas para mim e para nós. Sabes que há pessoas adictas. E eu acho que sou uma delas…

RP: Um dia fomos a um casamento; e esse foi um daqueles dias em que eu dei meia-dúzia de berros. O casamento foi aqui perto e foi no ambiente de trabalho dele. E, às tantas, eu tenho o Ângelo com a gravata na cabeça, a dançar.

AR: O problema não foi a gravata, mas a quantidade de whiskys que eu levava.

RP: Viemos embora mais cedo, porque achei que não podíamos ficar ali, com ele naquele estado, com a ‘fabrica toda lá’. Então, fui buscá-lo e puxei-o por um braço. Senti tanta vergonha, por ele. Não é por mim, porque eu também já fiz muitas cenas tristes. Foi pelo facto de o ver naquela situação perante toda a gente, que era o ambiente dele. Porque depois até tivemos algumas bebedeiras bastante divertidas…

AR: Nomeadamente aqui em casa.

RP: Mas são coisas pontuais e entre quatro paredes. Naquela altura aquilo estava a tornar-se uma coisa recorrente. Foi na fase em que ele estava sozinho cá em baixo. Sai dum meio rural para outro meio. Conhece gente que viaja, que janta fora, que vai sair…

RPS: E tu, Rosa, já abdicaste de hábitos pessoais teus em benefício de ambos?

RP: Por exemplo, eu não moraria aqui. Estaria em Espinho, em frente ao mar.

AR: Talvez a cuidar do teu pai…

RP: Pois, talvez por isso é que eu não estou! Mas eu estaria em Espinho, contigo! Não era com o meu pai. Aliás, porque eu tive tudo para ficar. Eu tive duas discussões com o meu pai por causa disso. Uma delas na véspera do meu casamento e a outra na véspera do meu último exame. É como se ele, inconscientemente, soubesse que a partir do dia em que eu acabasse o curso, a probabilidade de me pôr a andar fosse muito grande. Tal como casando.

RPS: Houve algum momento na vossa história, que tenha virado o jogo? Que vos tenha ajudado a dar mais valor ao que tinham…

RP: Precisamente quando ele veio sozinho para baixo.

AR: Foi aí que começamos a ficar autónomos.

RP: E depois havia aquela questão da distância. E isso, para mim, nunca foi um problema. Claro que ele me fazia falta à semana, mas a gente vivia com a sexta-feira na cabeça.

AR: E eu vim cá para baixo com o objectivo de criar uma carreira profissional; de investir em mim. Graças a Deus, consegui. O que foi bom para todos. Porque passados oito anos de estar aqui, tu vieste e arranjaste também emprego cá. Foi sem dúvida o marco mais importante da nossa história.

RPS: Houve algum momento em que tenham posto as coisas totalmente em causa?

RP: No dia a seguir ao tal casamento. Eu pus as coisas em causa. Porque eu ali (até é feio dizer isto), vi o Ângelo aldeão, rural.

AR: Claro. De onde é que eu venho?

RP: Por isso mesmo é que é feio dizer isto. Mas, realmente, ali, eu pensei que não era aquilo que eu queria para mim. E não é a coisa do ‘Ou tu mudas por minha causa ou, então,…’. Foi mais o facto de aquilo não ser bom para ele. E naquela altura já estávamos de casamento marcado.

RPS: Portanto, no teu casamento não pudeste dançar com nenhum acessório na cabeça?

AR: Não! Nada!

RP: Repara, estamos a falar dum gajo que não dança! E ele depois não se lembra de nada. Eu não: lembro-me de tudo! As minhas bebedeiras são sempre muito divertidas. E contam-se pelos dedos.

RPS: Quem é o Ângelo, para ti?

RP: O Ângelo é meu. Eu digo-lhe isto a brincar, mas é a sério. Se o perder, nunca mais vou autorizar que mais ninguém venha ressonar-me aos ouvidos. O Ângelo, para mim, é tudo. É este companheiro; é esta pessoa que sempre esteve comigo e é uma pessoa com quem eu sei que posso ser exactamente quem eu sou. Independentemente disso, às vezes, ser muito mau. Porque há dias em que é muito mau, eu sei. Mas sei que com ele não tenho que usar nenhum tipo de máscara. Não tenho que fazer nada diferente daquilo que eu sou. E isso dá-me uma tranquilidade única. Apesar de não saber metade… às vezes, parece que a gente não se conhece.

AR: Sabes, às vezes passam-me coisas ao lado… Eu não tenho aquela sensibilidade que é necessária um homem ter. Esquece. Não tenho.

RP: Por exemplo, há dias foi o Dia dos Namorados – que, por acaso, eu acho muito pindérico. Mas eu fui a Espinho e andava a ver umas lojas e vi um casaco que achei que ele ia gostar. Então, fui lá e comprei-lhe o casaco. E cheguei a casa à noite, já tarde, e dei-lhe o casaco. E ele estava ali dentro e ouço-o a dizer ‘Eh, pá, até me sinto mal! Eu não tenho nada para ti…’. E eu estive mesmo para lhe dizer ‘Que grande novidade!’. Mas não disse…

RPS: Mas tinhas comprado alguma coisa para ela?

AR: Tinha, tinha.

RPS: E o que é a Rosa para ti?

AR: Ah… A Rosa é…

RP: A Rosa?… Sabes que nós fomos pedir ao padre para não me tratar por Rosa no dia do casamento, porque ele era capaz de perguntar se queria casar com ela e ele responder ao padre ‘Quem é a Rosa?’

AR: A Romi, sem dúvida, é a minha companheira. É o amor em que eu tropecei algures na Universidade de Aveiro. Que surgiu na minha vida, na altura certa. E veio para melhorar a minha vida. Não só porque descobri nela o amor, mas também o companheirismo, o que é ser marido, ser amante, namorado – que era uma coisa a que eu não dava importância e não queria saber. Ela trouxe-me isso tudo: companhia, segurança.

RPS: Nas vossas amizades, entre os casais que conhecem, já alguma vez deram conta que vocês têm algo que os outros não têm, enquanto casal?

RP: Não sei se alguma vez falamos sobre o assunto, mas costumo dizer que quanto mais conheço os outros mais gosto de mim. E enquanto casal, entre os que estão à nossa volta, devemos ser os únicos que estão bem.

RPS: Bem na vida ou entre eles?

RP: Não, bem entre eles, como casal. Até porque o ‘bem na vida’ não traz, por si, mais felicidade, só por estarem bem na vida. Mesmo aí, a gente também não se pode queixar. Mas eu também não quero ser rica. Só quero é que não me falte dinheiro. Que é um luxo que a maior parte das pessoas não tem e nós ainda temos. Mas como casal, sim, talvez o único que está bem. Daí, muitas vezes, as pessoas não entenderem. Porque, à nossa maneira, sempre fomos dando a volta às coisas e sempre encarando o dia a dia, de forma tranquila. É para estarmos os dois e bem.

RPS: O que é amar, para vocês?

AR: Ui!

RP: Tu fazes cada pergunta! Não foi sobre isso que estivemos a falar até agora?

AR: Amar, é dar sem esperar receber. É saber perdoar. É não dar importância a pequenas coisas, a coisas mal arrumadas. Como a tampa da sanita levantada.

RP: Sim, até porque nós já descobrimos que alguém vem cá a casa de noite e nos levanta a tampa da sanita, todos os dias. Não sei se acontece em tua casa?

RPS: Antes isso que não levantar. Digo eu…

RP: Tens razão! Antes isso.

RPS: O facto de não terem tido filhos, fez com que o amor que podia ter sido dado aos filhos, fosse convertido para vocês?

AR: Tenho essa certeza.

RP: Até porque isso também foi uma coisa falada e pensada, de forma muito consciente. Não foi propriamente uma opção, mas acabou por ser. Porque é uma coisa que eu nunca quis muito. O Ângelo queria e quer e adora crianças. No entanto, a coisa nunca aconteceu, porque nunca fizemos nada para que acontecesse. A certa altura, fomos a uma consulta, tínhamos aí uns 36. Foi no Hospital da Luz, e só o nome da consulta já era, por si, espectacular: Procriação Medicamente Assistida. E eu aqui já começo a imaginar o médico aos pés da cama. É que já não consigo ver a coisa de outra maneira. E nesse dia, nessa sala de espera, numa ala reservada do hospital, chegamos lá separados e encontramo-nos lá e reparamos que, naquela sala, éramos o único casal que falava entre ele, dos vários que lá estavam. De resto, era uma tensão, uma coisa tão pesada, que nós ouvimos o médico e chegamos ao carro e perguntamos um ao outro ‘Viste o ambiente lá dentro? Tens a certeza que queres passar por isto?’. E depois, acabamos por decidir que não íamos forçar a Natureza e que se estivesse destinado, que íamos ter filhos duma forma natural. Porque isto deve ser das coisas que mais desgasta um casal. Por isso, se um filho já desgasta, agora imagina  lutares anos para o ter.

AR: E a Natureza nunca colaborou.

RP: Calma!

RPS: Ainda pode acontecer. Têm é que tentar todas as noites. Que é a melhor parte do processo.

RP: Até nisso… Acho que se fosse outro casal, teria insistido. E eu não quis passar por isso. Até porque depois, eu só ouço toda a gente a reclamar dos putos…

RPS: Todas as coisas têm um lado bom.

RP: Eu adoro os meus sobrinhos e às vezes penso ‘Se calhar também era giro, agora, que ele fosse meu e não se fosse embora’. Mas, por outro lado, também há essa parte: nem todas as pessoas têm que ter filhos e eu se calhar não nasci para o ter. Então não vamos forçar.

RPS: Não faz de ti pior pessoa. Há quem não tenha dentes, por exemplo…. Onde se vêem daqui a 20 anos?

RP: Numa praia, chinelo no dedo e água quente.

AR: A viver dos rendimentos.

RPS: Têm algum objecto que nunca venderiam, por ser um símbolo da vossa história?

RP: O sofá! Tem uma história. Na altura ainda não havia IKEA e então fomos a uma daquelas feiras, em Paços de Ferreira. E eu lembro-me que entrei e disse ‘Eh, pá, este sofá!’. E ele, disse logo ‘Nem olhes! Não temos dinheiro para isso’. E então, fomos ver a feira toda e no fim fomos ver o sofá. Hoje em dia já não é assim, mas outra coisa que o Ângelo reverteu nele, foi a forretice.

AR: Sim, eu olho para os preços do supermercado.

RP: Pronto, já vamos ter confusão…


Fotografias e Entrevista: Ricardo Pereira da Silva [RAWPHØTOLOGY]

Dezembro 5, 2017

Nem que a vida nos separe.

  De que é feita a expressividade? Que tempo ou distância cósmica vai da sensação de conforto ao estado de naturalidade? Onde e quando nasce verdadeiramente a intimidade e a cumplicidade? Onde fica o ponto zero a partir do qual tudo começa, como se fosse a nascente de um ribeiro que nos traz tudo isso no caudal e desagua na mais simples e bela das fotografias? 
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